A importância de um diagnóstico

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Muitas vezes - acontece-me em conversa com outros ou comigo mesma – debate-se a importância de ter-se um diagnóstico formal ou se o importante será concentrarmo-nos somente na vida em si e na felicidade/alegria e: papéis para que vos quero daqui pr’a fora. O caminho até ao diagnóstico é lento e difícil. Os profissionais não conhecem as doenças todas – o que não é incompreensível - e os intrumentos de diagnóstico podem ser demasiado padronizados, além do factor financeiro que um relatório comporta.


É realmente uma questão relevante e a minha posição muda em conformidade com a situação concreta.

Em última instância sou defensora de viver a vida mas não haja dúvidas que faz parte da condição humana a necessidade de saber qual o seu lugar de pertença. Foi assim para mim enquanto mãe e a minha experiência na direcção de uma associação também mo confirmou.

São muitos os pontos de interrogação que se penduram no estendal da vida, sejam do próprio ou dos familiares: o que é que tenho?/ por que tenho? /existe mais alguém igual a mim? / o meu filho vai ter amigos que sejam iguais a ele? / vou morrer? / é contagioso? / o que me vai acontecer? / o que posso fazer para isto parar? / como se trata”? / vou conseguir ser autónomo? / onde pertenço?

Entrei formalmente no mundo das necessidades especiais há sete anos atrás, quando o meu filho mais velho recebeu o seu diagnóstico. Ele tinha 10. No entanto, já há muito que eu sabia que alguma coisa se passava. A verdade é que foi uma confirmação, não uma completa surpresa. Nunca imaginamos a gravidade do que será, mas no fundo, sabemos sempre que alguma coisa se passa. 

Quando percebi que a doença dele é degenerativa a estrada do porvir transformou-se num tumultuoso mar de angústias. Além da preocupação com a saúde em si, dei por mim a olhar para ele e a pensar: então e os sonhos dele? Então, e agora..? ele toca piano, quer ser pianista, o que vai acontecer? Vai continuar a tocar? Tem de mudar de sonho? Preciso de levá-lo à escola todos os dias? Tenho de deixar de trabalhar? Como vamos viver?  

Todos nós sejamos doentes ou saudáveis questionamos o futuro, preocupamo-nos, sonhamos com ele, projectamos para sermos. Claro que saber o que podemos fazer, quem somos, o que nos espera, relaciona-se com a questão não só da nossa identidade de nós para nós mas também com o nosso posicionamento no mundo/sociedade e as perspectivas/expectativas de vida. O ser-humano – por mais tímido e recluso que seja -  é um bicho grupal, precisa do outro, de se integrar e de coabitar para ser pleno. Reconhece-se em si, no outro, afirma-se, confirma-se, e reconstrói-se todos os dias.

Saber o nome da doença do Diogo permitiu que a compreendessemos e a aceitássemos melhor, que lha transmitíssemos de forma mais serena; apercebermo-nos do  que ela implica, o que se pode fazer, o que se pode esperar, ajudou-nos a saber gerir a doença (horas de sono, hábitos, alimentação, os perigos a evitar) e a arquitectar soluções para os percalços que estão para vir  – porque todos os problemas têm soluções, por mais que não sejam as ideais. 

No nosso caso, levámos 10 anos a conseguir um diagnóstico. E querem saber algo incrível? Temos muita sorte, pois ao fundarmos a Associação Portuguesa de Charcot-Marie-Tooth a nossa noção da realidade mudou. São várias as pessoas sem um diagnóstico conclusivo e por conseguinte algumas não têm direito a tratamento e não sabem direito o que as beneficia ou prejudica. Cada vez que alguém me escreve a dizer que se sente perdido porque não sabe onde pertence, que nunca conheceu alguém como ele, ou por outro lado, a alegria em saber simplesmente o que têm e que agora já podem ter paz, saber parte de quem são, o meu coração ora fica apertado ora rejubila.

Em Portugal, no caso de uma doença genética, os doentes eventualmente acabam por só ter direito à comparticipação de três testes; se tiver a sorte de conseguir um resultado concreto, em três tentativas, Fantástico!; se tal não acontecer, ou se paga do próprio bolso, o que é um valor muito avultado para o bolso da maioria, ou se fica  com o ponto de interrogação pendurado para sempre. Não é muito animador mas é a realidade de muitos.

Por outro lado, quando olho para a minha pequenita, a minha segunda especial de corrida, já não sinto o mesmo. Ela não tem um relatório. E eu já não faço questão dele. É um sentimento e também uma conquista mais recente. Não foi sempre assim. Até porque tem expressão comportamental, o que por vezes é mais difícil e cansativo de gerir - física e emocionalmente. E tudo o que é de carácter comportamental, e também  quando é de grau leve, i.e., quando não salta à vista de todos, é muito estigmatizado. A primeira atitude por parte dos profissionais e muitas vezes de quem nos rodeia é de rejeição. Ela é perfeitamente normal, todas as crianças são assim... E passa-se algum tempo até que alguém valide o que dizemos.

Lembro-me que na altura, quando o neurologista chegou à conclusão do que seria e proferiu as ditas palavras houve algum sossego no coração – é de lembrar que eu já havia sido atropelada antes pelo camião da CMT, já estava artilhada para deixar passar outro camião. Terá sempre efervescências. Neste momento está muito bem, se virem que interfere muito com a qualidade de vida dela e com a familiar, voltem. Fará tratamentos de integração sensorial. Levantei-me e até me esqueci de lhe pedir o relatório. Nunca lá mais voltámos. Lá fomos aprendendo a cuidar dela.

Naturalmente, eu já havia iniciado a minha demanda à procura de informação, possibilidades, soluções. Fazia perguntas a amigos, à internet, aos médicos que encontrava, e paralelamente ia experimentado esta e aquela solução e a minha filha foi evoluíndo, até que um dia, a psicóloga do Diogo, perante as minhas sempre presentes perguntas e partilhas disse-me: Susana, ela está muito bem. É natural que se sinta sempre algo sozinha... actualmente, não me lembro do resto da frase. Reti que vou sentir-me sempre sozinha mas compreendi mais tarde que isso não é necessariamente um drama. 

Percebi:

1º que a família pode ter uma importância vital na direcção que uma dificuldade destas pode tomar; 

2º que quando as coisas não funcionam, não vale a pena chatearmo-nos e passar a vida concentrados em perseguir o inantingível. 

Afinal, o que interessa é a Matilde. Conseguirmos ajudá-la a disfrutar o melhor possível da vida. Ela tem os seus altos e baixos, mais altos do que baixos. Normalmente está muito bem. Na escola, a professora sabe, mas sabe também que se algum dia ela tiver um relatório eu irei mostrar-lho mas não o entregarei. 


Em suma: um diagnóstico é sempre importante mas dependendo do que se trata e das circunstâncias pode não ser o essencial. Para mim/nós o essencial é viver. E isso é uma aprendizagem que todos temos de fazer, com ou mais problemas. Todos os temos. Saber o nome das coisas facilita e muito. Podemo-nos preparar e fazer face com mais estrutura. 

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