- 17:05
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Uma das dificuldades que sentimos
desde sempre com a nossa Especial de Corrida nº2 é com a alimentação: cor, textura,
intensidade do sabor e efeitos colaterais de acúcares e congéneres - escreverei
sobre o acúcar durante a próxima semana, aguardem.
A boca desta miúda parece um
filtro. Não passa nada que lhe seja indesejável, já que detecta todas as
texturas.
Aspecto positivo disto das
dificuldades de integração sensorial e texturas: nunca se engasgou. Não temos de perder imenso tempo a separar
espinhas – embora, ainda assim, volta e meia o façamos; deverá ser, com toda a
certeza, mania de pais, coisas que precisamos mais nós do que eles
para nos sentirmos seguros e responsáveis.
Antes dos sólidos, ainda sem sabermos o porquê, já lhe notávamos
a exigência quanto à cremosidade da sopa e dos vestígios de legumes que
deixávamos por passar ou não. Virámos artistas da varinha mágica. Com o crescimento
e a diversidade de sólidos a entrar pelo cardápio, principalmente os legumes
com os seus vários tamanhinhos e, ai, as
várias cores, ai, ai, passou a ser uma verdadeira tortura, uma canseira... separava
e separava numa recusa irredutível de nos pôr os cabelos em pé. Até aprendermos
a conhecê-la, a respeitar aquilo que pensávamos serem esquisitices dela e
aceitar que com tempo, paciência e comunicação tudo se faz.
É, sem dúvida, um aspecto muito importante, a capacidade comunicativa:
não é só produzir as palavras, é o explicar o que sente, o que não gosta e o
porque sim e porque não. E é o nosso saber ouvir. Hoje em dia já conseguimos
negociar mais facilmente, mas os primeiros anos foram deliciosamente
arrepiantes.
Além das texturas, à mesa também
temos a alegria das cores e dos padrões a bater pé. A Matilde é, acima de tudo, visual e os
padrões sempre lhe foram um fascínio e como tal, gosta de comer no mesmo prato
– sempre às bolas -, já teve um outro prato e uma tipologia de copos
específícos e era um caso sério se nos enganassemos a pôr a mesa.
Como ela adora desenhar e tem uma
naturalidade com o lápis de carvão que nos surpreende, utilizámos também o
desenho como estratégia para a convencer a usar outra loiça chamando-lhe a
atenção para as ilustrações dos pratos -
os pratos antigos das avós azuis e brancos com paisagens pintadas servem que
nem uma luva -, desafiando-a a desenhar, suscitando a curiosidade dela,
portanto, de forma natural, suave e indo de encontro ao que a motiva, a
estimula, achas que consegues desenhar/queres
desenhar depois de comeres?/vá come para desenhares depois.
Hoje em dia já é tudo muito mais
tranquilo. Normalmente, damos-lhe o prato que ela prefere, outras vezes
enganamo-nos de propósito. Ela lá nos olha com aquele olhar oblíquo e nós respondemos
como quem nada quer, se comeres hoje
neste ninguém morre, certo? A comida não cai do prato nem te acontece nada de
grave, sim. Ela ora acena que sim e seguimos em frente, ora nos mostra o
beicinho de filha amorosa ohhhh, vá la,
e nós aceitamos e seguimos em frente. É como dançar. Um passo para aí, outro
para aqui, um sorriso no ar (às vezes não, somos gente de verdade) e lá vamos
nós, um dia depois do outro.
É sempre assim, não é? Simples.
Basta darmo-nos a eles, olharmos com atenção e respeitar a sua individualidade.
Dizem-nos tudo, mesmo sem palavras. Basta querermos ouvir. Para isso, é preciso
tempo. É preciso despojarmo-nos de nós e olhar para o outro.
- 13:20
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Como explicar a diferença às
crianças? Ou melhor, como fazê-las conviver com um mundo onde a diferença pode
ter formas disformes e onde o ideal de beleza não existe?
Quando Diogo foi diagnosticado a
pequenita tinha cerca de 6 meses. Além de ter de gerir a entrada consciente de
uma criança de 10 anos num universo hospitalar/de tratamentos que lhe era novo
até à data e que agora se lhe tornava num pertence, tinha uma bebé que também ia
conviver com essa realidade.
Fiz como faço sempre. Levo os
meus filhos para todo o lado onde vou. Acompanham-me em quase tudo e desta vez
não iria ser diferente. A Matilde entra na ala de tratamento ambulatório pediátrico do
Centro de Medicina de Reabilitação Física – instituição que assusta muitos
crescidos - e acompanha os tratamentos
desde o início. Vê meninos com próteses, sem pernas, meninos cuja fala é
enrolada, que se babam, que usam andarilhos. Desde sempre, assim como vê as
restantes pessoas desde sempre. As pessoas além terem olhos castanhos, serem
altas, usarem camisolas de lã ou de gola alta, podem usar cadeiras de roda, ter
os pés deformados. Todos perfeitamente imperfeitos ou não fossemos humanos.
Conforme foi crescendo foi
apontando e fazendo perguntas. Eu respondo a todas, não escondo nada,
simplifico e suavizo o vocabulário e explico que apontar em situação alguma é
coisa bonita. Mas não deixo de dizer que o menino x não tem pernas por A ou B
razão ou simplesmente porque nasceu assim. Eu, por exemplo, tenho umas belas orelhas de Elfo, o pai tem o nariz ligeiramente inclinado e todos cá em casa
temos um parafuso a menos. Felizmente!!
Eu também pergunto. Quando não
sei, pergunto. Por vezes, até peço para tocar/mexer para receber a informação
sensorial. Não deixo, por vezes, de receber um olhar de estranhamento, de
surpresa. Mas nunca ninguém mo recusou e no fim ficamos todos com um sorriso
nos lábios.
Em Alcoitão, enquanto o Diogo faz o seu tratamento, a Matilde aproveita para brincar com os brinquedos que lá estão, brincar com os meninos que podem ter ou não perna e até já ajuda na hidroginástica.
A minha pequenita vive agarrada
ao lápis e ao papel. Vai ser uma pintora, diz. Dos seus desenhos fazem parte
todas as realidades. É maravilhoso de observar e de sentir no coração!
- 19:36
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Quando entramos no mundo da
diferença a palavra especial começa a fazer-se ouvir diariamente. Substituimos
a palavra deficiente/diferente por especial: a criança tem necessidades
especiais / os pais são muito especiais / é muito especial, esta criança / precisa de medidas especiais e por aqui fora. Foram várias as vezes que
médicos e outros se perderam a elogiar-nos a nós pais por sermos especiais na
forma como encaramos a doença ou ao(s) próprio(s) pela especial aceitação da
sua condição.
No início sentia-me estranha ao
ouvir tantas vezes, vocês são especiais
e a levar para casa primeiro: uma doença degenerativa; mais tarde: qualquer
coisa ao nível da integração sensorial que não ficou muito bem resolvida em diagnóstico e nunca
teve direito ao relatório.
Não sei se somos especiais ou
não. Mas acho que a vida sem a felicidade (já sabemos da relatividade das
coisas e da própria) não faz sentido; a vida é para ser vivida com ou sem
doença/condição, não é para ser enclausurada atrás das grades da medicamentação
e dos tratamentos 24/7. Cá em casa temos
um contrato vitalício com a felicidade nem que chovam raios e coriscos. Uma vez
disseram-me, vocês têm muita sorte, ao que respondi que a sorte também se a
faz.
Tenho dois filhos que fogem à
norma e que me obrigaram a redescobrir o mundo sob a perspectiva de linhas
oblíquas. Reconstruimos a Sorte e a Fortuna todos os dias. Não nos rendemos nem
deixamos que a nossa vida se tornasse cinzenta. Encaramos a verdade de frente,
por mais que doa. Estudamos, discutimos, arranjamos planos para que a vida se
torne possível apesar da não normalidade com que lidamos todos os dias.
Arranjamos soluções não formais porque queremos que os nossos filhos vivam não a doença/condição que a genética ou a sorte lhes talhou, mas sim a Vida.. Umas funcionam, outras não. Umas mantemos,
outras reciclamos. Mas procuramos sempre soluções. Rimos muito. Todos os dias. A vida é o que fazemos dela.
Pintamos o dia-a-dia com a paleta de cor que quisermos. E foi assim que
decidimos viver a entrada de uma doença degenerativa neuromuscular de um e as
dificuldades de integração sensorial de outro.
Será essa a tónica do que
procurarei partilhar aqui no Especial de
corrida - um blogue que terá periodicidade quinzenal. Ficarei muito feliz se alguém quiser partilhar as suas estratégias
comigo. Aprendemos todos juntos.
Não controlamos o destino. Nem se
o pretende. Mas somos donos da direcção que damos ao que nos acontece.
Nota: utilizo a palavra doença porque
me refiro aqui a uma que está realmente definida como tal, e utilizo o termo
condição (ou outro congénero) – quando me refiro às dificuldades de integração
sensorial - por em certas situações não
existir, efectivamente um rótulo fechado.
- 20:48
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