A deficiência a cada pequeno passo

16:47


Escadas, escadas, calçada portuguesa, escadas, íngremes subidas, descidas inclinadas que propulsionam o corpo para a frente. Autocarro, comboio, caminhar, caminhar. Sensivelmente hora e meia de caminho, desde a porta de casa até à porta da escola.

É esta a duração da viagem quotidiana do meu filho. É este tipo de piso e obstáculos com que ele se depara todos os dias para chegar à escola. Quem tem CMT sabe que é um desafio e tanto. Imagino que ao saberem que no quadro da Charcot-Marie-Tooth a fadiga pode acelerar a sintomatologia, a progressão da degeneração, devem pensar que estou doida, certo? Como é que deixas o teu filho andar isso tudo a pé, Susana? Vai cansar-se. Pode cair e magoar-se.

Pois pode. Pode cair a qualquer momento, em qualquer sítio, sozinho, ao meu lado, nas condições mais improváveis e que pareciam das mais seguras. Enquanto não cai e isso não compromete a marcha dele, vai viver. Vai fazer tudo o que quiser – salve seja – e que um jovem da idade dele deve fazer. Vai correr para apanhar o comboio e vê-lo partir no último instante, estava mesmo quase. Vai andar de transportes com os amigos: todos juntos, voz grossa, ai meninos da música, perdão, a voz grave a entoar carruagem fora; vai encontrando e somando os amigos de todas as manhãs. As piadas e desculpas para os atrasos que inventam juntos, imagino eu, a cumplicidade a crescer entre mochilas, passeios estreitos das ruas apinhadas, a calçada portuguesa sempre a desafiar, o equilíbrio a tentar manter-se firme.

Sim, devo estar doida, pois o Diogo, por agora e enquanto ele assim quiser, vai a pé e de transportes públicos para a escola. Vai subir escadas porque pode, porque consegue. É só mais tarde que as pernas não vão conseguir levantar, é só mais tarde que virá o impedimento. Enquanto tiver força, enquanto lhe restar músculo que lhe permita desenhar passos e lançar-se em corridas, pois assim fará.

No caminho para a escola ganha-se autonomia, descobrem-se paisagens e ruelas que se tornam memórias só suas. Relaciona-se intimamente com a cidade e descobre-lhe a poesia que lhe povoa sempre as ideias e o coração. Como ele adora Lisboa... como ele adora percorrer-lhe as ruas consigo mesmo e os seus pensamentos...




Como poderia eu tirar-lhe algo que ainda não perdeu? É a juventude a cumprir-se em todas as suas descobertas. Vai, miúdo! Vive a tua vida, vive a tua idade! O que o futuro te guarda está ainda distante, lá à frente, numa placa de trânsito sem direcção. Certezas? Nenhumas. Não as tenhas, senão a certeza em ti. Colecciona sorrisos, gargalhadas, amizades, amores de fins de tarde. Come a vida às colheradas! Barriga cheia de felicidade!

Como se consegue tudo? Com equilíbrio e responsabilidade! Comer bem, descansar muito, muito, mas mesmo muito. Esta é a parte chata, para ele, pois com a idade que tem obrigo-o a deitar-se cedo, máximo 22h nos dias de aulas, 0h00 ao fim-de-semana - nem sempre todos -, mas realmente na CMT descansar é vital. Se uma semana está mais pesada – com ensaios e aulas mais tardias -  na outra que se segue tem forçosamente que encontrar forma de descansar mais. Naturalmente, que também é de importância fulcral fazer os alongamentos, ir aos tratamentos, usar as ajudas técnicas  - que muitos não gostam e deixam de lado. O Diogo foi diagnosticado aos 10, anda sozinho de transportes públicos desde os 13, só voltarei a ir buscá-lo e a levá-lo onde ele quiser e precisar quando ele mo pedir ou quando o corpo dele der sinal. Até lá, o destino cumpre-o com os próprios pés!

Sei que vos falo sempre, tal como irei sempre fazê-lo, do viver a vida e da alegria e felicidade, mas afinal, qual outro senão esse o objectivo de estar vivo?



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